Hermano Vianna – Utilidade pública*
Não gosto de quem legisla em causa própria. E de quem utiliza sua coluna para fazer propaganda de seus próprios trabalhos… Mas o texto hoje é utilidade pública. Este fim de semana em Salvador e no início da semana que vem aqui no Rio, com um show avulso em São Paulo, vai acontecer o festival PercPan. Junto à diretora Beth Cayres e com Carlos Galilea, jornalista do “El País” e um dos maiores conhecedores da música mundial e brasileira, fiz a curadoria desta edição. Já trabalhei em outros festivais.
Sei como uma boa seleção de atrações é fruto de muita batalha, mas também questão de sorte. Depende daquela banda querer vir ao Brasil, aceitar o nosso cachê, nossas datas. A América do Sul nunca é prioridade no mercado de shows.
Muitas vezes, fazemos planos perfeitos. No final do processo, chegamos a uma escalação totalmente diferente. Porém, neste PercPan, todos os nossos melhores sonhos se tornaram realidade. Apesar de serem nomes desconhecidos do grande público (e é por isso que me sinto na obrigação de escrever este texto), não pode haver festival mais bacana, em qualquer lugar do mundo. Se você tem algum interesse por música, por favor — para o seu próprio bem — não perca nenhum show. É oportunidade rara para ver nomes que dificilmente se apresentarão no Brasil novamente.
Não estou exagerando.
Sou o maior crítico do que faço, sem piedade: procuro defeitos em tudo. Mas é difícil encontrar algum detalhe de que não gosto neste PercPan. Não saberia indicar a melhor noite, ou uma única atração. O conjunto é o mais interessante, a proximidade entre estilos diferentes. Vou passar a fazer comentários específicos sobre cada atração. Quem quiser escutar as músicas antes, tendo que escolher ao que vai assistir, pode entrar no site do festival, onde encontrará áudio e vídeo, além de mais informações.
Jon Pareles, o chefe da crítica musical do “New York Times”, já resumiu de forma provocadora: “A Orchestre Poly-Rhytmo de Cotonou, do Benin, pertence à lista muito pequena das melhores bandas de funk do mundo.” Completo: para mim é tão boa quanto a banda de James Brown no início do anos 70 ou a de Fela Kuti no final da mesma década. Era, até bem pouco tempo, um segredo africano. Foi preciso que um colecionador de vinil tenha visitado Cotonou à procura dos seus ídolos para descobrir que a banda continua na atividade, com a mesma força há quase 50 anos. Foi só em 2009 que fez seus primeiros shows na Europa e em 2010 nos Estados Unidos, para plateias eufóricas. Por aqui, este primeiro show tem significado especial por conta dos fortes laços culturais que unem as histórias do Brasil e do Benin, com tantas trocas no século XIX (e antes) e poucas recentemente. O público brasileiro vai identificar elementos poderosos de candomblé e tambor de mina logo no início puramente percussivo do show. E depois, quando os instrumentos elétricos atacarem, vai cair num transe afrofunk de sofisticação absoluta.
O Hypnotic Brass Ensemble, de Chicago, é também uma das melhores bandas funk do mundo, apesar de tocar apenas com sopros e bateria. Não importa se toca num palco ou na rua, onde se apresenta sem microfones no meio do povo: seu suingue é irresistível, atraindo cada vez maior legião de fãs. Como os componentes do Gorillaz, que convidaram o Hypnotic para tocar em seu último disco e em sua próxima excursão. O repertório inclui versões para Fela Kuti, Outkast, Jay-Z e até Art of Noise.
Buraka Som Sistema é um coletivo luso-angolano que levou o kuduro, música eletrônica criada nas favelas de Luanda, para os mais influentes festivais do mundo e para fusões com house, dubstep e funk carioca, tendo gravado inclusive um grande sucesso com a nossa Deise Tigrona.
O Nortec Collective reúne vários artistas baseados em Tijuana, na problemática fronteira México/EUA. A visão de mundo fronteiriça, inclusive a política de repressão/incentivo à imigração ilegal , influencia sua música, um cruzamento alucinado da eletrônica com o folclórico. O resultado muitas vezes parece um Kraftwerk de sombreiro, embriagado pela dose certa de margaritas.
Não sei se a banda gosta desta comparação, mas é boa para atrair público: o Nova Lima está para a música afro-peruana assim como o Bajofondo ou o Gotan Projetc estão para o tango. A combinação de pop e eletrônica com o tradicional é feita com elegância, sem perder a potência dançante jamais.
As Tucanas são mulheres que, em Portugal, misturam tradições musicais de todo mundo lusófono criando novos instrumentos de percussão e batucando também em seus próprios corpos. A Kocani Orkestar faz a festa misturando tradições ciganas e dos Balcãs.
Fui diminuindo os comentários sobre cada atração pois já estou na fronteira do espaço desta coluna. Não se trata de preferência. E ainda nem falei dos convidados brasileiros e dos apresentadores.
A complexa fusão bigbandno-candomblé da Orkestra Rumpilezz, as novas big bands paulistanas reunidas no Movimento Elefante, o pós-samba-duro-rap do EdCity, o carnaval indie do Bloco Cru: todos eles merecem colunas inteiras para comentar seus trabalhos.
E os apresentadores são os bateristas Charles Gavin, João Barone e Igor Cavallera. Este último leva seu MixHell para a festa do Caneção.
O festival quer ser o MixCéu. Bom rebolado, em todos os ritmos!
*da coluna do Hermano publicada todas as sextas no Jornal O GLOBO.